Da gestão da crise ao Estado capaz – Lições Aprendidas com a Pandemia do Sars-Cov2
- GestRio

- 26 de ago. de 2020
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A pandemia do novo coronavírus evidenciou um contexto bastante complexo que requer adaptações variadas nos diferentes setores sociais e da estrutura governamental, com repercussão para a gestão pública.

O comércio mundial de bens e insumos médico-hospitalares, necessários para o enfrentamento da crise sanitária, ganhou uma dinâmica peculiar. Entidades estatais de todo mundo se depararam com poucos fornecedores globais de equipamentos de proteção individual, de testes de diagnóstico e de respiradores. A presença de empresas pouco confiáveis e a expressiva demanda levou a um quadro de competição com enormes distorções nos preços praticados. Governos diversos como o de Nova Iorque, da Bolívia e da Espanha foram acusados de corrupção, de malversação dos recursos ou de incompetência.
No Brasil, a necessidade de responder rapidamente ao problema, em um contexto de descoordenação nacional da Pandemia do Sars-Cov2, impôs às autoridades dos três níveis de governo expressivos limites técnicos, políticos e estruturais. O caso do Rio de Janeiro não é um ponto fora da curva. Nesse sentido, traz elementos que destacam problemas na capacidade de resposta da Administração Pública.
É notável o trabalho de combate à corrupção realizado pelos órgãos de controle no Estado do Rio de Janeiro, levando à identificação dos responsáveis pelos casos flagrantes de desvios ocorridos recentemente. Reconhece-se que o Judiciário cresce na incapacidade dos demais Poderes em resolver os conflitos, muitos herdados das gestões passadas. Ainda, alguns dos instrumentos ampliaram a interferência dos órgãos de controle sobre o Poder Executivo, criando compromissos de difícil execução e limitando a sua capacidade de atuação. As demandas são ampliadas e aumenta-se a tensão diante da vigilância constante, sem discussão sobre as condições para a sua consecução.
Em adição a esse quadro, a gestão pública fluminense possui especificidades que não podem ser ignoradas: as posições-chave da administração pública predominantemente ocupadas por indicações políticas; as limitações orçamentárias e financeiras (que, reforma após reforma, só tornam as escolhas do gestor cada vez mais limitadas); baixa credibilidade da administração junto aos fornecedores; sobreposição e fragmentação de legislações; uma estrutura administrativa ineficiente; e as recorrentes ordens judiciais. Todo esse conjunto limita a gestão pública a um exercício de resiliência diante do caos.
Especificamente em relação à saúde pública fluminense, a priorização do modelo de gestão por Organizações Sociais (OS) se revelou equivocada, não logrando superar as fragilidades da estrutura estatal, conforme prometido na época de sua implementação. Ao invés de organizar, a contratação de OS fragmentou ainda mais a gestão do sistema de saúde, implicou em gastos mais altos e evidenciou a frágil capacidade institucional na regulação pública sobre essas instituições.
Esse conjunto gera um efeito perverso: cria uma expectativa de que a solução passe pela identificação da “pessoa certa”, moralmente incorruptível, tecnicamente capaz para resolver todos os passivos e com apoio político irrestrito. Além de pouca correspondência com a realidade, instaura-se uma distorção nas instituições públicas, criando a lógica do “supersecretário”, hipercentralizador e hierarquizador das decisões estratégicas. Esse ciclo fatigante de ilusões e frustrações com o novo “supersecretário” da vez impede o amadurecimento institucional.
Em uma situação crítica, há recuos por medo das implicações jurídicas e criminais atreladas “ao CPF do gestor”. Predominam a inação e o incentivo para que mal intencionados assumam os riscos associados às posições decisórias. A realidade acaba por impor forte dependência das ações dos antecessores e, por consequência, pouca flexibilidade para implementar soluções inovadoras e mais resolutivas. É um círculo vicioso negativo: os que ficam não são estimulados a agir e o estado crítico da gestão se arrasta; bons quadros não permanecem e tornam as instituições públicas ainda mais fragilizadas.
Dessa forma, é preciso analisar os elementos centrais desse conjunto de problemas: (i) a falta de ferramentas para enfrentar passivos deixados por gestões anteriores; (ii) a pouca transparência sobre os processos decisórios e sobre as qualificações dos ocupantes dos cargos em comissão na Administração Pública; (iii) a pouca autonomia decisória para níveis tático-estratégicos da gestão; (iv) exagerado engessamento do orçamento público, tornando as possibilidades de investimento público bastante exíguas; (v) a inflação de normas confusas, conflitantes e defasadas, que não favorecem a inovação e a implantação de soluções rápidas em situações de emergência; (vi) a pouca confiança nas instituições decorrente dos sucessivos escândalos divulgados com espetacularização e que geram pouco aprendizado institucional para que tais práticas não se repitam; e (vii) o enfraquecimento do quadros próprios e concursados das Secretarias de Estado, que são cada vez mais ocupadas, de maneira geral, com alta rotatividade e baixa qualificação. Como resultado, quem acaba penalizada é a população, pela paralisia do Estado e pela inoperância das políticas públicas e da gestão governamental.
A despeito do cenário complexo, há caminhos possíveis para sair desse labirinto. Os consórcios de governos estaduais sobre área temáticas, como o caso do Nordeste e sua atuação conjunta contra a Covid-19, se revelaram promissores. A recente reformulação da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro pode ajudar a implementar uma visão mais consequencialista na atuação dos órgãos de controle – de modo que o objetivo seja construir soluções. É preciso, ainda, construir um pacto público que una diversos atores da sociedade fluminense para que iniciativas sejam implementadas no intuito de preservar as vidas das pessoas e de mitigar os efeitos da severa crise econômica pela qual o estado passará – um pacto que supere a crise de legitimidade que atualmente se observa no estado.
Outro ponto fundamental é o de valorizar e empoderar, colocando em posições de relevância decisória, as carreiras públicas. O estado do Rio de Janeiro possui carreiras de gestão, inclusive na área de saúde, ocupadas por pessoas tecnicamente qualificadas, que poderiam ajudar a construir soluções para a crise. Servidores de carreira em posições estratégicas de tomada de decisão não apenas mantêm a memória administrativa, como também compartilham o ônus da decisão com o Secretário – enfraquecendo a necessidade de se ter um “supersecretário” e fortalecendo as instituições públicas.
Para que os problemas estruturais sejam superados e se possa salvar vidas é preciso que não se foque apenas em punir, mas sim em apoiar boas práticas. Aprender com os erros e fomentar a implementação de soluções inovadoras são os caminhos de aperfeiçoamento da gestão pública fluminense e da construção de um Estado com maior capacidade institucional.
É desejável implementar mecanismos que diminuam a discricionariedade na atribuição das remunerações dos cargos de livre provimento. Isso diminuiria os espaços para exercer poder arbitrariamente e a politicagem mesquinha que apequena as instituições, além de reforçar a impessoalidade e permitir que as remunerações sejam compatíveis com a responsabilidade da função. Além disso, é importante que se busque reequilibrar os espaços para a coexistência entre a técnica, a política e a participação social. Ainda, é importante aprofundar a transparência nas nomeações e nas funções exercidas pelos ocupantes de cada cargo de confiança e suas respectivas remunerações, de modo a evitar inadequação entre as atribuições e as qualificações do nomeado.











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